Num ensaio intitulado Desemparedar o Pensamento (incluído no livro O Universo num Grão de Areia), Mia Couto conta a história de quando o poeta e ex-presidente do Vietname Ho Chi Min escreveu um livro de versos, chamado Cadernos do Cárcere, enquanto estava na prisão. "Quando lhe perguntaram como tinha conseguido produzir versos tão delicados, tão cheios de afeto, num lugar tão cruel e desumanizante como a prisão", “a resposta de Ho Chi Min foi esta: ‘o que eu fiz foi desvalorizar as paredes’” .
Para muitos, os entraves colocados à acessibilidade à cultura, num mundo onde esta é ainda profundamente desigual, são como as paredes que encarceravam o poeta vietnamita. No entanto, tal como as flores que teimam em brotar na aridez da pedra, também a cultura ousa resistir apesar de todas as adversidades. As costas de um camelo, uma árvore ou um tanque de guerra são apenas alguns dos sítios onde nasceram algumas das bibliotecas mais insólitas do mundo. Sem muros, são simbólicas de uma visão cada vez mais acessível e igualitária da cultura, bem como da eterna capacidade de adaptação da literatura. A propósito do Dia Internacional das Bibliotecas Escolares, assinalamos a sua capacidade de destruir paredes e desemparedar pensamentos, com cinco bibliotecas que resistem nos sítios mais improváveis.
Bibliotecas itinerantes nas costas de um camelo
Com o encerramento das escolas devido à pandemia, Raheema Jalal procurou uma forma de levar a escola até às crianças da região de Kach, no Paquistão. Tratando-se de uma região onde as atividades extraescolares para os mais novos são inexistentes, era importante encontrar uma solução que, para além de educativa, proporcionasse também um escape para estas crianças, sedentas de distrações. Tendo encontrado inspiração em projetos semelhantes na Etiópia e na Mongólia, começou o projeto da Biblioteca do Camelo em agosto de 2020 e, desde então, o camelo Roshan leva livros e alegria às crianças de aldeias remotas da região.
Já na Mongólia, a ideia de uma biblioteca itinerante foi motivada pela reestruturação de várias bibliotecas em bancos ou agências financeiras, no início da década de 90. Face a esse desinteresse pelo setor cultural, Dashdondog Jamba decidiu criar uma biblioteca que, segundo o próprio, é “um bocadinho diferente das outras”. “As paredes da sala de leitura são feitas de montanhas cobertas por florestas, o teto é o céu azul, o chão é um tapete de flores e a luz vem do sol”. Com o seu camelo, leva livros às crianças das comunidades rurais de Gobi, alguns dos quais escritos e traduzidos por ele.
Os biblioburros da Colômbia
Nem só dos camelos nascem bons (e improváveis) bibliotecários. Na Colômbia, o professor primário Luis Soriano recorreu aos seus dois burros para levar livros às crianças da sua comunidade. Rebatizados de Alfa e Beto, os biblioburros têm como objetivo colmatar a ausência de bibliotecas nas províncias mais pobres e isoladas, de modo a que todas as crianças cresçam com oportunidades iguais. Quando começou, tinha apenas 70 livros — entre livros infantis, dicionários, ou livros de história e geografia — da sua biblioteca pessoal. Hoje, com a ajuda de dezenas de voluntários, conseguiu expandir a sua biblioteca e frota de biblioburros de modo a chegar a cada vez mais crianças, e serviu até de inspiração para o livro infantil Biblioburro, escrito por Jeanette Winter.
Armas de instrução massiva
Na Argentina, o artista local Raul Lemesoff começou uma verdadeira guerra contra a iliteracia e a ignorância no seu país. Transformou um velho Ford Falcon 1979 num tanque de guerra revestido de livros, ao qual deu o nome de “Arma de instrução massiva”, e percorre as ruas da cidade de Buenos Aires distribuindo livros gratuitamente ou até atacando algumas pessoas que apanha desprevenidas, com a arma mais poderosa do mundo: “Livros, não armas. Cultura, não violência” (Os Sonhadores, de Bernardo Bertolucci). A sua única exigência? Que elas leiam os livros doados. Para além de ser uma forma de difundir a cultura no país que viu nascer Jorge Luis Borges, é também um protesto silencioso contra as armas de destruição massiva que ameaçam destruir a cultura.
A biblioteca mais pequena de Itália
Antonio La Cava, um professor primário reformado, acredita que é impossível viver sem a companhia de um livro. Converteu a sua carrinha de três rodas numa pequena biblioteca portátil e percorre a região montanhosa de Basilicata, no Sul de Itália, há mais de 20 anos, fazendo chegar livros às crianças que, de outra forma, não teriam acesso a eles. A par da biblioteca, iniciou ainda o projeto Fino Ai Margini que organiza workshops literários nas escolas da região, em localidades com menos de mil habitantes. Quando questionado acerca do que o motivou a passar a sua reforma como bibliotecário itinerante, responde que preocupava-o a ideia de envelhecer num país de não-leitores. Com a sua pequena carrinha de três rodas, prova verdadeiramente que não há sítio onde os livros não consigam chegar.
in https://www.bertrand.pt/blogue-somos-livros/livrolicos/artigo/num-tanque-ou-a-camelo-as-bibliotecas-resistem/190870 (consultado em 22/10/2023) Adaptado
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