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CARTAS DE AMOR A JOSÉ SARAMAGO



Durante as celebrações do centenário de José Saramago, foi lançado o passatempo “Uma carta de amor a José Saramago”, uma iniciativa do realizador Miguel Gonçalves Mendes, autor do documentário José e Pilar, em parceria com a Fundação José Saramago, a Comunidade Cultura e Arte e os Cinemas NOS.


Damos-te a conhecer aqui as cartas de João Carvalho, Maria Exposto e Daniela Morence, autores das missivas vencedoras do certame.



1.º Prémio – João Carvalho


A José, meu pilar.


Meu querido José,


Não sei por onde começar. Não há um início. Escrevo com o peito, não com as mãos nem com a cabeça. As mãos desenham a escrita, mas o que escrevo não me sai das mãos. Mas adiante, adiante…


16 de novembro de 2022, são 23h49 e estou de rastos. Aguardo o autocarro que me levará de volta a casa, na Ajuda, ali perto de Belém. Gostaria de poder encontrá-lo – a si – numa morada certa, seria bom. Estou farto de ouvir dizer que o José está em todo o lado, tal qual deus. Cansa-me essa conversa religiosa sem lógica. Ou estaria aqui ou não está cá, como você próprio sabia. Se me dizem que está em todo o lado, eu acho abstrato e resmungo entre dentes, estar em todo o lado é estar em lado nenhum.


Procuro-o como Blimunda buscou Baltasar. Nove anos, José! Nove anos, José! Nove anos buscou ela Baltasar, para vir a encontrá-lo executado em praça pública. Sabe bem que foram nove anos, foi você que o escreveu. Quanto à sua vontade, não falarei, essa deve andar pelas estrelas, que eu saiba não houve ninguém como a Sete Luas que retivesse esse bem tão precioso – falo da sua vontade, José! – cá entre nós.


Em 2010, depois da sua morte, como era muito novo, pedi à minha mãe autorização para enviar uma carta à morte. Escrevi eu tal carta, pedindo à entidade – a morte – que devolvesse o José onde pertence. Precisamos de um humanista como o senhor nestes tempos injustos, tempos de uma guerra que não é nossa, no fundo, nenhuma dessas guerras onde se derrama sangue alheio é nossa. Depois de escrita, a minha mãe tratou do envio dessa carta. Meteu o manuscrito dentro de um envelope cor violeta e no endereço do destinatário não se escreveu mais nada do que “Para a morte”. Que tontaria minha! Tenho curiosidade em saber onde chegou essa minha carta, o mais certo é que não tenha chegado à destinatária pretendida, pois ela não me respondeu. A senhora morte deve ter grande prazer e orgulho em tê-lo do seu lado, tal como nós, os vivos, o tivemos quando você por aqui andou. É uma pena que a vida seja assim, mas eu continuo a procurá-lo. Recentemente, descobri que o posso encontrar nos seus livros, mas por vezes queria um abraço e não sei como chegar-lhe. Talvez quando a minha hora chegue, talvez aí me possa reunir consigo no quarto escuro da morte, e antes de recriminá-la por ter ignorado a minha carta cor violeta, vou abraçá-lo, finalmente!


Escrever-lhe uma carta de amor significa também escrever a Blimunda e Baltasar, à mulher do médico que guiou a humanidade por instantes, ao cão das lágrimas, a Marcenda de Sampaio e ao seu braço esquerdo paralisado, ao amor de Lídia e Ricardo Reis, a Raimundo Benvindo, ao cão preto do violoncelista ou até a Caim, Abel e Jesus Cristo. Procuro todas estas personagens como o procuro a si todos os dias. Temo não encontrá-las como temo não encontrá-lo a si, mas isso não me faz perder a esperança. Sou tenaz na minha missão. Sei que se o encontrar também encontrarei todos aqueles sobre quem escreveu e deu voz nos seus livros. Perdi-me e desculpe-me, você fez ontem cem anos. Repito: cem anos, que número redondo e bonito para idade.


Ora, 17 de novembro de 2022, são 00h14 e cheguei a casa. Estou de rastos porque ainda não foi neste caminho de autocarro que o encontrei. Estou de rastos como não fiquei depois de ver pela primeira vez o seu filme mais biográfico “José e Pilar”. Estou atrasado agora que o vi pela segunda vez. E no cinema! Faz tempo que já não ia ao cinema… bem, já a caminho de perder-me outra vez na escrita. Adiante…


Estou, neste momento, desolado como quando soube da sua morte. Talvez seja melhor deitar-me. Vou deitar este peso vazio sobre a cama e ela que o suporte, eu não o aguento mais. Vou fazer isso e tentar não sonhar, para que o meu sono seja só preto e, de alguma forma, esse sono me aproxime de si. Não sei como acabar esta carta, talvez que não haja um fim. Ah! Com o passar do tempo já me esquecia: – Parabéns atrasados, querido José.

Com amor, José, muito amor. Do seu João Carvalho


João Carvalho lê a sua carta a Saramago




2.º Prémio – Maria Exposto


José Saramago,


Quando publicaste o meu livro favorito, Zé, ainda tinha eu 21 anos de espera para nascer. Quando o li, há 11 anos que já cá não estavas. Apesar disto, nunca deixei de achar que um dia ainda te ia conhecer, num virar de esquina, falar contigo, e ainda não consigo deixar de esperar por mais um livro: afinal, um génio como o teu não poderá ter finitude – significaria isso que um dia passarão pelos meus olhos todas as palavras que deixaste escritas? Que te vou esgotar? Serão estas dúvidas que impedem que a minha próxima leitura seja uma tua, com medo que um dia te vá acabar?


Quando li O Meu Primeiro Saramago, que até hoje coincide com o meu livro preferido, tantas palavras que podem ser resumidas em cinco, quando li o Memorial do Convento, numa banalidade como a obrigação, que tristeza a obrigação ser banal, foi como abrir uma porta da literatura que até então não sabia que existia. Quando li o Memorial do Convento, descobri que afinal há quem veja as mulheres como nós somos.


Quando li o Memorial do Convento e vi Blimunda, personagem principal, uma mulher como um ser humano normal, uma mulher do povo, uma mulher que não foi mãe porque não quis, quando li o Memorial do Convento e vi retratada uma história de amor tão bonita e simples como a de Baltasar e Blimunda, soube e afirmei-o com toda a certeza: “O José Saramago é o meu escritor favorito”. Não me faltou coragem para com apenas uma obra lida saber que a partir dali todas me falariam como aquela me falou. E apesar de já ter lido mais umas quantas, ainda afirmo com toda a certeza: “O José Saramago é o meu escritor favorito”. Leitora ávida desde criança, com 17 anos de sapiência literária em cima, nunca um autor me tinha tocado no coração da maneira como tu o fizeste. Nem eu o sabia possível. A minha avó tinha morrido há uns meses, José, quando li as Pequenas Memórias, sem sequer adivinhar que também falarias dos teus avós, e como tens saudades deles, e como a tua avó não queria morrer, e como a minha queria, “estava velha”, mas eu não queria que ela morresse, assim como eu não queria que tu morresses, mesmo depois de morreres. Será possível uma carta de amor com tantas vezes o verbo “morrer”? – sei que tu não tens medo da morte, tens medo do tempo que já não te faltava, mas não tens medo da morte, por isso acho que não levas a mal.


No fundo, José, queria que tivéssemos sido amigos, ou melhor, queria que tivéssemos sido amigos contemporâneos, se é que essa designação é possível, mas eu conheço-te, sei como te chamas, de onde és e onde moras, que idade tens, sei que não gostas de ser entrevistado, que o amor da tua vida é a Pilar, não te posso já considerar amigo? Percebo agora que ainda não me apresentei. Sou a Maria, sou de Lamego mas moro em Lisboa, tenho 19 anos e o amor da minha vida é o António, não sei se gosto ou não de ser entrevistada porque nunca o fui. Pronto, agora também já me podes considerar tua amiga.


E com isto, José: És meu amigo. És meu avô. És meu professor. És meu irmão. Tu escreves para mim, Saramago, e se calhar um dia ainda te vou conhecer. Afinal, “sempre chegamos ao sítio aonde nos esperam”.


Maria Exposto lê a sua carta a José Saramago




3.º Prémio – Daniela Morence


Querido José,


Em grande parte da sua vida, eu ainda não havia nascido e por força dessas circunstâncias, vejo-me obrigada a escrever-lhe quando já não poderá ler esta carta, nada garantindo que se fosse ainda vivo a leria. Tal como o José, não sou grande crente de que algo nos espera depois de por cá passarmos, mas vai na volta, estávamos ambos enganados e afinal haja alguma coisa, espero que se encontre bem. Mesmo que tenha agora tempo ilimitado, acredito que esteja a fazer algo melhor do que estar a olhar para mim a escrever isto sentada ao computador. Se estiver em algum lado, espero que esteja em Lanzarote.


Nessa terra árida, extraterrestre, fiz todas as minhas férias de verão com os meus pais, eles nada tinham contra o Algarve, mas tendo a possibilidade íamos para lá, no início do mês de setembro, quando os hotéis estavam mais vazios e as praias mais calmas. Sempre que começava a escola ouvia as mesmas piadas, Que terra é essa de Laçarote, as crianças sempre são muito criativas, mas a verdade é que nos últimos anos que me recordo de ir, já um nome vinha sempre acompanhado da ilha, Saramago. Não conhecia Saramago, mas conhecia José e Pilar, não você, mas os meus tios. Ele, português, e ela, espanhola, que foram viver para Lanzarote e tiveram uma filha, Gloria. Quantos pares de José e Pilar caberão numa ilha? Na boa tradição portuguesa, o tio José não é chamado assim, podendo ser confundido com tantos outros tios Josés, era sim, Z’Alberto e a minha tia, também não se escapava das alcunhas e é tratada por todos por Pilly. Assim que demorei anos a aperceber-me de que havia uma coincidência que nos unia. Que poder terão os nomes? Talvez não muito, pois as semelhanças terminam aí. Mas tudo isto me fez gostar de si desde criança, mesmo antes de ler uma palavra escrita por si, porque na simplicidade da infância tudo o que era de Lanzarote era bom e se o José vivia lá, só podia ser bom também.


A primeira vez que li um livro seu foi porque a escola o ditava, tenho a dizer que teve mais sucesso comigo do que Eça de Queiroz, que talvez mereça uma segunda oportunidade, ninguém merece que as suas palavras sejam lidas contra vontade, para isso bastou-me ir à missa. Mas as suas palavras não me custaram nada a ler, o tempo que usei não foi perdido, mas diria que até achado. Sempre gostei de escrever, as composições eram a minha parte favorita dos testes e consigo percebi que podia ser diferente a escrever, que podia ter a minha própria voz, que as regras dos ditados que tinha decorado desde a primária, Perguntou, Parágrafo, Travessão, Ponto de interrogação, Parágrafo, Travessão, Disse, Parágrafo, Exclamou, Parágrafo, não tinha de as seguir se queria escrever. Mas nem foi só a forma que me mostrou que eu podia fazer diferente, mas também os temas. Não fui cética desde pequena, o ceticismo foi crescendo ao mesmo passo que eu e com o Memorial do Convento descobri que podia também falar daqueles que mais poder têm e menos fazem algo de útil com ele. Mas ainda mais impactante que o Memorial, talvez tenha sido o Evangelho, que a minha avó, com as melhores intenções, me deu a cópia que tinha em casa e apesar de não ter lido, aposto que pelo título acreditava que seria um texto muito bonito e tinha toda a razão, mas talvez não no sentido que imaginava. Fui uma criança e adolescente modelo para a igreja católica, fui à catequese todas as semanas, confessei ao padre todas as vezes que desobedeci aos meus pais, cantei e li na missa, coletei as doações inúmeras vezes e ainda cheguei ao sacramento do crisma, tudo para chegar à conclusão que foi uma extrema perda de tempo. O seu livro ajudou-me a fazer as pazes com esse tempo perdido, que se vir Jesus apenas como um homem que foi bom e que pode ser admirado apenas por isso, talvez me possa focar apenas que aprendi algo da vida de alguém e que posso usar todo o resto para criticar como devo e posso. Se calhar o que diz no livro alegadamente sagrado foi mesmo assim ou nem por isso, mas que não vale a pena ficar agarrada ao assunto.


Podia continuar aqui a falar de todos os outros que li a seguir, de como senti que se calhar também sou uma mulher duplicada, mas acho que isso agora não lhe interessa nada. Só tenho que lhe agradecer por tudo o que escreveu, sei que não o fez por mim, mas não deixou de ser importante. Espero um dia voltar a Tias e desta vez visitar a sua casa, sabendo que não está lá, mas o seu nome está por toda a parte.


Um abraço, Daniela


Daniela Morense lê a sua carta a José Saramago



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