Aos 82 anos, a francesa Annie Ernaux foi distinguida esta quinta-feira [06/10/2022] pela Academia Sueca, tornando-se a 17.ª escritora, em 121 anos, a conquistar o mais prestigiado dos prémios literários.
Com a habitual pontualidade e secura protocolar, o secretário permanente da Academia Sueca, Mats Malm, anunciou esta quinta-feira que o Prémio Nobel de Literatura de 2022 (no valor de dez milhões de coroas suecas, cerca de 918.000 euros), distingue a escritora francesa Annie Ernaux, pela “coragem e agudeza clínica com que põe a descoberto as raízes, os efeitos de alienação e os constrangimentos colectivos da memória pessoal”. Ernaux, a primeira mulher francesa a vencer o prémio – juntando-se a uma galeria de 15 homens, entre os quais se contam autores como André Gide, Albert Camus ou Patrick Modiano (este o mais recente, em 2014) –, foi imediatamente saudada, no Twitter, pelo presidente Emmanuel Macron, que vê nela “uma voz da liberdade das mulheres e dos esquecidos do século”. Entrevistada por uma cadeia televisiva sueca, a escritora agradeceu a “enorme honra”, sublinhando que a consagração vem acompanhada de “uma imensa responsabilidade, a de testemunhar o mundo através de uma forma de justeza e de justiça”.
Nascida em 1940, em Lillebonne, uma pequena povoação na Normandia, Annie Ernaux cresceu no seio da classe trabalhadora. O pai foi operário, a mãe tomava conta de um pequeno comércio (meio café, meio mercearia). Primeiro elemento da família a seguir estudos superiores, a escritora ficou desde cedo marcada por esse processo de ascensão social, fugindo de um mundo precário e pobre, em direcção aos confortos e tédios da burguesia, trajectória não isenta de arrependimentos, de sentimentos contraditórios e autoquestionamentos identitários, que acabam por ser uma das fontes e esteios da sua obra literária.
A singularidade do projecto a que Annie Ernaux se lançou, nos seus mais de vinte livros, está na forma como decidiu explorar, com os instrumentos da ficção, a sua própria vida, olhando para si mesma enquanto personagem, uma outra que é ela mesma, diante dos momentos capitais da sua biografia. Foi assim que explorou, por exemplo, a relação com o pai, com a mãe, com outros membros da família, com amantes. Ou regressou a momentos traumáticos ou redentores: a perda da virgindade na adolescência; um aborto clandestino feito aos 23 anos, quando ainda era crime em França (tema do extraordinário “O Acontecimento”, lançado pela Livros do Brasil há poucas semanas); um caso amoroso com um homem muitíssimo mais novo, já numa idade madura (descrito em “Uma Paixão Simples”, também recentemente reeditado em versão de bolso).
A escrita quase neutra, sem preciosismos estilísticos, mas de uma enorme precisão, foi sempre posta ao serviço de uma vontade de fundir as experiências e memórias pessoais no quadro mais vasto de uma sociedade em mudança constante. Essa vontade atingiu uma espécie de apogeu em “Os Anos”, talvez a sua obra-prima, um livro que era para se ter chamado “Romance Total”. Entre a primeira frase, “Todas as imagens irão desaparecer”, e a última, “Salvar qualquer coisa do tempo onde não voltaremos a estar”, Ernaux cria, mais do que uma “autobiografia impessoal”, uma espécie de caixa negra onde cabem todas as imagens da sua vida e sinais de uma certa França, a das últimas décadas (da II Guerra Mundial e do pós-guerra até ao início do século XXI), memórias individuais e colectivas condenadas, mais tarde ou mais cedo, a um esquecimento que a escrita, na sua impotência melancólica, tenta adiar. E Ernaux, num gesto sem dúvida político (o livro, diz-nos, é um “instrumento de luta”), cria esta cápsula de tempo a partir de uma linguagem comum, acessível, por vezes quase “dilacerada”, porque não poderia ser de outra maneira: “nunca escreveria a não ser a partir da sua língua, a de todos, o único instrumento com o qual podia contar para agir sobre aquilo que lhe causava revolta”.
Contactada pelo Expresso, a editora de Annie Ernaux em Portugal, São José Sousa, responsável pelo catálogo literário da Livros do Brasil, não escondeu a “alegria pura”, o “tremendo júbilo” que a notícia lhe trouxe. “Pessoalmente, admiro muitíssimo esta autora e fico naturalmente feliz por saber que a atribuição do Nobel lhe vai dar uma visibilidade muito maior.” Os três livros editados mais recentemente permitiram perceber que Ernaux tem um público fiel em Portugal, mas muito longe do estatuto de ‘best-seller’. Antes do anúncio da Academia Sueca, já estavam em curso negociações para a publicação de mais títulos da escritora francesa. Contactos que se intensificarão agora, embora ainda não se saiba ao certo que títulos se perfilam no futuro próximo. “Depois do Nobel, é claro que espero ampliar rapidamente a bibliografia de Ernaux em Portugal. Em 2023, contamos publicar pelo menos outro livro dela. Ou talvez mais do que um, já que as suas obras são em geral bastante curtas e não correm o risco de se canibalizarem umas às outras”, garante São José Sousa.
José Mário Silva
Consultado em 09/10/2022
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